terça-feira, 2 de outubro de 2012

Razões e Motivações

Dar voz aos últimos

Parecia que íamos ter uma tarde de sábado como outra qualquer. O calor apertava nas horas a seguir ao almoço e a Rosanna e eu tínhamos ficado por casa a preparar algumas coisas para a eucaristia do dia seguinte e a fazer as contas da despesa do posto de saúde naquela semana
   A um certo momento, chegou uma mamã pigmeia que trabalha connosco. Trazia a filha, de 2 anos, que estava doente. E, enquanto eu «aviava» a receita do hospital, convidámo-la a entrar em casa e a partilhar connosco um copo de água fresca, aproveitando também para pôr a conversa em dia, já que fazia tempo que ela não vinha trabalhar. Passados alguns minutos da partida desta visita, chegou o nosso presidente da câmara e, claro, entrou em casa e nós aproveitamos a companhia para mais um copo de água fresca.
Partilhar
 Quando este partiu, dei-me conta de que tinha vivido naquela tarde uma das coisas mais importantes na missão: partilhar a minha casa tanto com os mais desprezados como com os mais respeitados da sociedade.
Na verdade, esta pequena tarde de sábado fez-me recordar a criança apaixonada pela África que eu era… Pois é, desde cedo eu desejava estar o mais perto possível daqueles que nada têm e, sobretudo, de ser uma com eles, de modo que pudesse ser ponte entre os mais pobres de entre os pobres e as suas autoridades locais e, claro, entre estes e a Europa.
Recordo que, quando parti, com 24 anos, para a missão na República Centro-Africana não tinha nenhuma ideia do que me esperava. Sabia apenas que Deus me chamava e que o coração da África precisava de mim tanto como eu precisava dele.
Neste sentido, a formação com os Leigos Missionários Combonianos (LMC) foi muito importante e ajudou a confirmar a minha vocação como leiga e missionária dentro do carisma de Comboni, mas, se naquela altura eu amava a África e não concebia a ideia de «ser feliz» sem lutar activamente por um mundo mais feliz, mais justo e verdadeiro, hoje posso afirmar que a doação à África traz-me mais do que a felicidade, traz-me o sentido para a vida, a força para a esperança no manhã e, sobretudo, faz-me sentir o amor e a presença de Deus mais do que nunca, afinal, estando entre os mais pobres do mundo inteiro, estou entre os mais amados de Deus.
Quanto ao meu amor pela África… ninguém ama, verdadeiramente, aquilo que não conhece. Hoje, eu amo a missão não no abstracto mas no concreto das pessoas, das lutas, das dores e das alegrias do dia-a-dia.
Sempre como LMC, não me imagino na missão como consagrada, mas como jovem que, na sua liberdade, ousou sonhar e lutar por aquilo em que acredita para que o Reino de Deus aconteça, de facto, no meio de nós.
Esquecidos pelos homens
 Falo-vos, pois, da República Centro-Africana, este país tão esquecido pelos homens e tão amado por Deus. Aqui, estou numa comunidade LMC em plena floresta africana vivendo e trabalhando com os pigmeus e com os bantos (não pigmeus).
Tenho vindo a lutar com eles para que a crescente desflorestação acabe. Com efeito, se o abate das árvores não cessar, dentro em breve não existirão mais pigmeus na região e os bantos, que vivem nas aldeias, tornar-se-ão mão-de-obra barata de quem quiser explorar a região.
Actualmente, por causa desta situação, os pigmeus e os não pigmeus são obrigados a viver demasiado próximos e, claro, o choque cultural – para o qual ninguém estava preparado e que foi, naturalmente, imposto pelos interesses das empresas europeias de madeira – faz que os pigmeus vivam numa situação de escravatura e exclusão social total.
Para ajudar a fazer frente a esta exclusão social, a missão criou e gere seis escolas de integração para os pigmeus. Escolas, estas, que estão espalhadas pela floresta num raio de cerca de 60 km. Tentamos, assim, através de um método específico, que as crianças pigmeias frequentem os primeiros anos de ensino para depois serem mais bem integradas nas escolas públicas.
Para isso, nestas escolas, estudam também crianças bantas. Deste modo, procuramos começar um caminho onde todos, pigmeus e não pigmeus, possam viver juntos, em cooperação e harmonia.
No entanto, há que estar sempre atento, pois o trabalho nas escolas públicas não é fácil. Os professores são os primeiros a discriminar e escravizar as crianças pigmeias. Doloroso é pensar que o fazem, não porque são «más pessoas», mas porque a presença da Europa, que todos os dias explora e devasta este país, aqui se faz sentir de uma forma tão acentuada que corrói e destrói aqueles que eram os princípios e os valores desta cultura banta.
Chegam a existir dias em que ser branca me faz sentir mal, porque me faz sentir parte e cúmplice desta amarga realidade.

Fome e doença
 Outros problemas que daqui advêm têm que ver com a saúde. Como os pigmeus vivem da floresta, esta, ao ser destruída, abre um caminho de fome e de doença. Por um lado, de fome, porque as árvores, que são a base da alimentação, são abatidas. Por outro, de saúde, porque as doenças aumentam e as árvores e plantas medicinais, usadas nas curas tradicionais, começam a ser difíceis de encontrar. Neste sentido, e também para ajudar neste caminho de integração dos pigmeus no sistema de saúde público, a missão gere um posto de saúde. Este está especialmente direccionado para os pigmeus e para os mais pobres da aldeia.
Aqui, não fazemos as consultas, servimos apenas de ponte entre os doentes e o centro de saúde público, dando também o apoio necessário para a toma de medicamentos. Connosco trabalha um enfermeiro-socorrista centro-africano que nos ajuda a acompanhar os doentes para a correcta toma de medicamentos e a fazer a sensibilização sanitária nos acampamentos pigmeus.
Nesta área, posso dizer-vos, as lutas são mais que diárias: são de minuto a minuto! A todo o momento deparo com erros clínicos graves no centro de saúde público que resultam tanto da ignorância e negligência de quem lá trabalha, como da discriminação e da falta de consciência da importância e valor da vida.
Assim, há dias que este centro de saúde parece produzir mais a morte que a vida. Por isso, quando as mortes acontecem «sem terem de acontecer», isto leva-nos a lutas que terminam ora em tribunal ora no Ministério da Saúde.
Um destes exemplos foi o de uma bebé de quase um ano. Chamava-se Dimanche, porque nasceu num domingo, e a sua mãe morreu na hora do parto. A avó pegou nela e pediu-nos ajuda para salvá-la. Era uma linda menina e agarrou-se ao biberão como se já tivesse mais de um mês de vida! Estava esfomeada a pequenina.
Pois é, formamos a avó para as questões de higiene e para que esta aprendesse a fazer e a lavar o biberão e, para isso, ficaram ambas a viver perto da nossa casa durante quase um ano.
Como todas as crianças, também a Dimanche tinha as suas doençazinhas, mas tudo ia correndo bem. Um dia, mais uma vez, ela ficou doente. Era um domingo e, como todos os domingos… o «enfermeiro» que devia estar no centro de saúde não se encontrava lá… A pobre Dimanche ficou das 8 horas da manhã até às 5 horas da tarde sem nenhuma assistência médica… no dia seguinte, morreu!
Sim, o caso não é único a seguir o caminho judicial, no entanto, não estamos aqui para «quebrar» relações mas para, juntos, seguir em frente nesta luta por um mundo mais justo. Por isso, apesar destas dificuldades, a Missão, com o posto de saúde, continua a lutar por um trabalho de integração e colaboração com o centro de saúde público.
Dar voz
 Quem cá está não é senão vítima da corrupção mundial que ajuda este nosso governo centro-africano a preocupar-se mais com abastecer-se de armas do que com a Saúde e a Educação deste povo. Será, então, legítimo exigir competência desta gente que nunca foi livre para, no seu próprio país e cultura, receber a formação, tanto pessoal como profissional, a que teria direito?
Certamente que não, mas isso não nos desanima, ao contrário, faz-nos lutar em favor da vida e da verdadeira liberdade deste país que, teoricamente independente, continua a sofrer diariamente os abusos da colonização.
Estas e outras dificuldades não nos desalentam, antes nos dão esperança para acreditar no amanhã. Sim, o trabalho é muito, mas Deus faz-se presente a cada instante.
Nestas questões sociais, apercebo-me que, mais importante que ser voz dos que não têm voz, é conseguir dar voz aos que a não têm. Na verdade, o «Salvar a África com África», de que Comboni falava, passa por aí.
Claro que não é fácil, mas lutar hoje para que um pigmeu lute, ele mesmo, pelos seus direitos é o único caminho para que este encontre o seu espaço na sociedade e que, amanhã, o mundo possa de facto ser melhor para esta gente. Do mesmo modo, abrir caminhos para que este povo centro-africano lute contra a dominação e a corrupção é a verdadeira missão de quem ama este povo. Talvez, por isso, vos escrevo, hoje, para que uma porta se abra e o grito de quem aqui sobrevive e sofre possa ser ouvido no mundo inteiro e que, amanhã, sejam estes mesmos centro-africanos a romper as amarras da dependência e da morte a que estão sujeitos.
Evangelizar
 Outro aspecto importante aqui na missão tem que ver com a acção pastoral e de evangelização. Organizámos e assistimos seis grupos de jovens que se multiplicam pelas 17 capelas que a paróquia tem. Ou seja, há que dar uma mãozinha nas actividades destes 102 grupinhos. Não é tarefa fácil! No entanto, vou-me fazendo presente na medida do possível, na esperança de que, também nesta área, possam vir mais LMC dar uma ajuda, para que possamos estar mais com as pessoas e, com elas, ajudar a florir a flor da esperança, da fé e do amor.
Por vezes, com estas andanças, pergunto-me se estou a dar a devida atenção às pessoas com quem vivo e àquelas que vêm à missão e se a mensagem do Cristo que aqui me chamou está a passar… Muitas vezes acho que não e que estou demasiado absorvida com as «coisas que tenho para fazer». Contudo, recordo o Zepherin, a nossa sentinela, que, certo dia, estando nós a apanhar a roupa, me disse:
– Susana, ensina-me a rezar! Eu às vezes não consigo!
Eu, que andava, como sempre, com a preocupação de não estar a dar testemunho d’Aquele que aqui me enviou, respondi-lhe:
– Eu, se calhar, também não sei rezar. Rezar não se aprende. Rezar é estar, é falar com Deus. Não é nada de complicado, mesmo se há dias que não conseguimos sentir-nos em oração, o facto de lhe dizermos: «hoje, não consigo», já é estar a rezar.
O Zepherin foi então mais longe, e disse:
– Eu queria rezar como tu rezas!
Tal foi a minha surpresa, que quase deixei cair a roupa que tinha nos braços!
– Eu? – perguntei-lhe. – Como é que sabes como é que eu rezo? Eu rezo como toda a gente reza! Não faço nada de especial!
Ele respondeu-me:
– Susana, eu vejo como tu fazes as coisas! Há alturas em que a situação é complicada e tu, em vez de perderes a cabeça, dizes: «Logo se vê o que acontece. Deus providenciará», e a verdade é que normalmente as coisas ou se resolvem ou ficam, pelo menos, mais calmas.
A partir daí, só tentei dizer alguma coisa valorizando a oração que ele também fazia. Contudo, o sentir que, de facto, é a forma como vivemos a base da evangelização faz-me repensar a minha forma de agir e estar com os outros.
Pensar-se que a evangelização e a missão são «coisas para padres e freiras» é um erro e uma forma de fugir às nossas responsabilidades cristãs.

Ser com os outros
Aqui, na República Centro-Africana, precisamos de gente capaz de lutar, através do Evangelho, em favor deste povo que, conhecendo tão pouco a Cristo, busca conhecê-Lo através da coerência de vida daqueles que dizem que O conhecem, sejam estes padres, freiras ou leigos.
A missão, em todos os lugares do mundo, precisa de testemunhos de vida que sejam chave para a libertação dos povos. Hoje, na missão, o desafio não é «fazer alguma coisa para os outros», mas «ser alguma coisa com os outros».
A oração sem a acção é vã e distante dos valores do Evangelho.
Hoje, a missão desafia-nos a viver de acordo com os valores que defendemos e em favor de um mundo onde todos, sem excepção, sejam considerados, de verdade, filhos de Deus.


2 comentários:

  1. Ler-te dá-me a certeza do longo caminho que ainda tenho que percorrer. Mas dá-me a certeza que é de fato isto que quero para a minha vida. Mesmo que tenha receio de arriscar por pensar nas consequências que isso pode trazer. Ouvir-te dizer: "Vamos ver o que Deus providenciará". Diz-me com certeza que aconteça o que acontecer, mesmo com os meus medos e receios seguirei o seu caminho, o que ele escolheu para mim...direi o meu sim a sorrir. Afinal mesmo que eu tenha medo sei que há sempre uma pessoa a quem eu posso confiar a minha vida.

    Obrigado por partilhares as tuas experiências. Fazem-me muito feliz.

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    1. Obrigada pela partilha Paula. Na verdade, Deus sempre providencia mas, é também verdade, que ELE conta sempre connosco (de uma forma ou de outra) para providenciar.
      Um caminho só se faz caminhando... um passo de cada vez. Convido-te a dar um primeiro passo, e depois outro, e outro... Logo verá que, sem dares por isso, te encontarás num caminho onde a Felicidade vai para além do contentamento/ bem estar e a Alegria para além dos sorrisos.
      Beijinhos

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